quarta-feira, 19 de setembro de 2007

VIGÉSIMO SEGUNDO DIA Terça-feira, 18 de Setembro de 2007.

Chove. Chego sozinha. É o dia em que o Beto dá aula e só vem à noite.

O segurança brinca: “Só porque o inter perdeu, ele não veio trabalhar, é?”

Sigo o ritual de abertura do trabalho. Colocar o “figurino”; descobrir as gaiolas (que ficam cobertas durante a noite, como que para os passarinhos dormirem); tirar os utensílios básicos da mochila e escondê-la embaixo do tecido vermelho; esconder tudo o que não pertence à cena; armazenar as comidas no criado-mudo; limpar o tapete.

Olhar de fora, acertar os tecidos.

Ouvir os fones, acertar os volumes.

Tudo pronto para mais um dia de LAR DOCE LAR.

A vulnerabilidade de estar aqui exposto ainda não havia ficado tão clara quanto outro dia, quando um homem, aparentemente normal, veio até nós e iniciou uma conversa que logo percebemos ser de uma pessoa com alguma psicopatia. Extremamente desconfiado, ele disse ao Beto: “eu e tu somos caras legais, mas ela, não.” (Ela, sou eu.) Disfarçamos e tentamos manter a cena, mas ele nos solicitava atenção. Depois daquele dia, diariamente, ele vem ver a instalação. Hoje veio novamente. E eu estava sozinha. Diante do meu silêncio, ele foi embora.

“Moça, tu não morre de tédio de ficar aí?”, pergunta uma adolescente. A nova geração, acostumada ao excesso de informação atual, fica ainda mais admirada em ver-nos aqui “presos”.

“Oi, Cláu! Cadê o Beto? Eu leio todos os dias o diário de vocês!” Pessoas que eu não conheço, mas que passam a me conhecer através do trabalho.

Acabei meu segundo livro aqui dentro: Filhos de Anansi, de Neil Gaiman.

Uma senhora diz que demorou a ter coragem de se aproximar porque tinha a sensação de estar me invadindo. “Rondou” a obra alguns dias, até conseguir chegar perto e ouvir a canção.

Essa mesma senhora contou que sua filha está no Canadá e recusa-se a voltar porque, lá, ela pode voltar sozinha da aula e sentar num parque com os amigos, sem ter medo. Agora, a jovem diz não conseguir mais se adaptar à realidade que vivemos no Brasil.

A funcionária da loja em frente trouxe, até o nosso LAR, as fotos das filhas para me mostrar. Teve toda a dedicação de escolher, separar e trazer fotos do que imagino serem as coisas mais importantes da vida dela.

A fotógrafa do jornal O Sul veio fotografar nosso trabalho, bem como as outras obras que estão espalhadas pelo shopping, para uma matéria que sairá no final de semana. O interesse e apoio da mídia é sempre uma felicidade por termos, assim, o nosso trabalho e esforço reconhecidos.

A mãe do Beto apareceu trazendo cachorrinhos-quentes. Apoio familiar indispensável...

Uma pequena menina, tímida, se aproxima. Deve ter uns quatro anos de idade. Olha-me nos olhos. Enfim, pergunta: “Qual o teu nome?” – Cláudia, e o teu? – “Ana”. E vai embora.

Leio o jornal. Bagunça total no governo brasileiro.

“Ta muito legal, né, mãe???” Grita o menino com os fones nos ouvidos, pensando falar baixo. Veste bombacha e chapéu, devido à semana Farroupilha.

“Mas que linda obra de arte...” Diz o rapaz galanteador, lançando-me um olhar lânguido e sensual.

Danilo e Viviane, ele psiquiatra, acharam a canção um tanto “psicanalítica”, assim como nossas outras canções, que conheceram num show que fizemos anteriormente. Aproveitamos para consultá-lo, dizendo que talvez precisemos de uma terapia após o término desse trabalho, ao que ele respondeu que achava que, ao contrário, pelas nossas caras, estamos muito bem. Ufa!

Uma criança de aproximadamente dois anos fica hipnotizada com a visão da “jaula”. Quer se aproximar, mas tem medo. Olha-nos assustada. Dá uns passos na nossa direção, mas recua. O confinamento impõe distância, mesmo para uma criança. As grades representam perigo?

Beto chegou do seu trabalho no mundo externo, trazendo cookies de chocolate.

Ficamos contando como foi o dia um para o outro até percebermos que mais um dia havia terminado.

Um comentário:

Jener Gomes disse...

É mesmo, esqueci de comentar antes: O Beto falou - seriamente - ao psicopata que tu, Cláu, é a esposa dele? Que é uma pessoa fantástica, excepcional, companheira, etc.? É importante para não dar margem à qualquer coisa. Avisaram os seguranças, a administração e os lojistas próximos? Ele continua indo?

Ótimo o relato sobre a guria no Canadá! São referenciais muito bons e importantíssimos.

Pois é, bagunça política - com sempre... Souberam do nosso protesto na Redenção ao vexame Renan Calheiros? Faremos outro, em conjunto cou outros do Brasil, no dia... 29? (Hi, achei que fosse no domingo!)