segunda-feira, 17 de setembro de 2007

VIGÉSIMO DIA Domingo, 16 de Setembro de 2007.


Um lindo Domingo nublado. Ruas vazias, provavelmente a maioria das pessoas ainda está dormindo. Seguimos para o nosso “caso de amor”. Depois das dificuldades de adaptação dos primeiros dias, agora, só resta a satisfação de estar aqui. Na materialização de uma idéia, na concretização de um sonho.

Três senhores se aproximam. Um deles pergunta: “O que é isso aí, hein?”, com um certo desprezo no olhar e na voz, como se o que nós estamos fazendo não fizesse o menor sentido, a menor diferença. E, ao perceber que se trata de uma obra de arte, dá de ombros, como quem conclui que, de fato, uma obra de arte é algo inútil para a sua existência. Mas, como dizia Mário Quintana, “se alguém perguntar o que você quis dizer com esse poema, responda: o que Deus quis dizer com esse mundo?”

No domingo, as portas do shopping abrem às dez da manhã, mas as lojas só abrem às 14h, e apenas algumas. Ainda assim, mantivemos o nosso horário, porque há sempre algumas pessoas circulando pelos corredores. As funcionárias da cafeteria do andar de cima, já nossas amigas, esquentaram gentilmente o nosso café da manhã, já que não havia clientes. Enquanto eu esperava que nossos salgadinhos esquentassem, ouvi delas que muitos clientes perguntam sobre o nosso trabalho e, não raramente, elas escutam discussões sobre ele nas mesas. Uma das atendentes me contou que faz questão de explicar tudo sobre a nossa obra, que somos dois artistas de Porto Alegre, que somos casados, que estamos simbolizando a realidade atual... E, diante de mim, tive uma explicação sobre meu próprio trabalho, vinda de uma moça que trabalha numa área completamente diferente da minha, num lugar onde não se espera discutir arte. É um privilégio, como artista, fazer parte dessa interação. Aquilo foi de uma beleza para mim, que quase chorei.

Uma funcionária da cafeteria me contou que a pergunta mais absurda que já ouviu sobre nós foi: “Mas aquilo ali são pessoas de verdade?”

Definitivamente, hoje é o dia em que as famílias contemporâneas saem para dar pipoca aos macacos. Na falta de macacos, porque os hábitos mudaram, e muitas pessoas preferem os shoppings a levar os filhos ao parque, hoje, os macacos somos nós. O olhar sobre o trabalho muda completamente. Somos atração não pela obra, mas por sermos criaturas enjauladas. É difícil não rir quando um jovem pai, que passa com o filho de uns 3 anos de idade, pára em frente ao trabalho e diz, com muito espanto: “Olha, cara! Tem um cara aqui dormindo, ó!” O menino olha, assustado, para o Beto. Os dois se aproximam ainda mais, encostando o nariz na grade. Circundam o Beto, com olhares de quem acaba de encontrar um filhote de dinossauro. A criança está muda, assustada, já está puxando a mão do pai para fugir dali, antes que o monstro acorde. O pai, boquiaberto, num meio sorriso de surpresa e espanto. O menino puxa o pai e eles seguem seu passeio.

Um outro menino, de uns dez anos de idade, pára em frente à instalação. Estou escrevendo e nem percebo que ele está enchendo um saco plástico de ar, diante do Beto, que dorme profundamente. Depois de bem cheio, ele aproxima do Beto e estoura. E sai correndo. O Beto nem se mexeu.

“Vou dar um beliscão nele pra ele acordar!” Comenta uma moça que passa...

Em frente às grades, pára um menino de óculos, de uns quatro anos. Comenta com a mãe, aflito: ”Eles estão numa jaula? Eu não quero estar numa jaula!!!”

A avó de uma querida amiga veio ver o nosso trabalho. Aos 84 anos, ela mantém os olhos vivos, lúcidos, a pele uns 20 anos mais jovem do que a sua idade cronológica. Me desafia: “Que idade tu me dás?” Conversa animadamente, ouve a música, elogia o trabalho. Conta que é ceramista, e ainda pratica, mostra no peito o colar de cerâmica que ela mesma fez. Pergunto o segredo de tanta vivacidade, e ela professa: “Viver o momento! Dar valor às pequenas coisas! Ser feliz!” Quem há de discordar?

Volto do banheiro e há uma comitiva à minha espera: “Ah, tá ali ela! Ta ali ela!”

O Beto já tem diversos apelidos, dados pelos seguranças e funcionários do shopping: Jesus, Lennon, Lobão...

“Mas com quê eles se mantêm?” Pergunta uma senhora ao senhor que a acompanha. “Eles comem, ora!”, ele responde, sem paciência.

Sento de costas para os fones, de frente para a escada rolante, vejo o andar de baixo. Às vezes me refugio assim, de costas para o público, ainda que não haja forma de escapar dele. Mesmo nessa posição, fico de frente para as escadas rolantes. Às vezes dá vontade de ficar sozinha um pouco. É muita gente. Cansa. A atenção constante, para fins de registro, cansa.

...Olhos espantados me vigiam da escada rolante.

Uma menina traz o avô para nos ver. Ele escuta a música, ela escuta duas vezes. Ao sair, ele conta, com a vaidade dos avôs: “Ela me trouxe até aqui só para ver vocês!”

“O que é isso?” É uma obra de arte!

“Tem gente que tem tanto, tanto dinheiro, mas que só tem dinheiro!” Ouço de uma senhora.

19h. Estou de cabeça baixa, escrevendo. Crianças tossem insistentemente para chamar a minha atenção. Só pararam quando levantei os olhos da tela e sorri para elas.

Lindos cachorrinhos com laços de fita no colo das suas donas... Crianças tomando sorvete... Cheiro de café...

Um dos seguranças vem me contar que uma senhora, cliente que passava pelo shopping, veio dizer a ele que deveríamos fazer esse trabalho no aeroporto... Porque, com a crise aérea, poderíamos alugar o espaço para as pessoas que têm que dormir por lá quando perdem o vôo.

“Há dias estou curiosa... Podes explicar isso?”

- É uma obra de arte. Como um quadro.

“Ah, é só isso então? Não está divulgando nada?”

- Penso que a arte não tem um propósito além de ser... Mas não falo. Não é este o meu papel aqui.

2 comentários:

jotacê disse...

Caros, fui a POA para a Bienal e estive no Shopping no domingo. Gostei muito da música e da obra. Parabéns e saúde para agüentar até o fim!

Jener Gomes disse...

Ótimo e grande relato! Impressões e frases preciosas, olhos e ouvidos atentos... Nada mais escrevo; fico a pensar, assimilar, entender, compreender.