domingo, 30 de setembro de 2007
LIVRES
Primeiro dia livres.
Passeio no Parque Farroupilha, nossa Redenção...
Abraçar árvores...
Rolar na grama...
Dormir sem hora para acordar...
Ainda não postamos os dois últimos dias porque não deu tempo.
O Show de encerramento foi lindo.
Aguardem notícias, fotos e fatos.
Gratos por tudo.
Cláu e Beto
quinta-feira, 27 de setembro de 2007
TRIGÉSIMO DIA, Quarta-feira, 26 de Setembro de 2007.
Hoje percebemos que a obra está interferindo seriamente nas nossas reações, o que enriquece muito o trabalho. Estamos sentindo na carne os efeitos de estarmos presos entre grades. Estamos irritados e nos obrigamos a ser gentis e naturais com as pessoas, que, afinal, não têm culpa nenhuma por termos criado esta obra. Refletimos muito sobre todos estes efeitos, e ficamos nos perguntando o quanto essa realidade (porque antes deste trabalho ser arte, ele é o reflexo de uma realidade) estaria afetando a nossa sociedade.
Enquanto tomamos nosso café da manhã, nossa amiga da loja em frente vem conversar. Conta que ontem assistiu à entrevista que demos à TVE, sobre o nosso trabalho e que reuniu a família para jantar, sobre a cama, para ver. Aproveita para dizer que LAR DOCE LAR nenhum é completo sem filhos, que precisamos ter filhos logo. O pessoal todo da loja faz campanha para que tenhamos filhos.
“O que acontece com tudo o que pertence à obra depois?” – Pergunta alguém. Esta obra só existe enquanto está aqui, enquanto estamos aqui. Depois, fica este registro em palavras e a lembrança de quem viu, as fotos, o livro de visitas, os vídeos, a música, nós. As sensações.
Dois amigos vêm visitar a instalação e inicia uma conversa que se estende por alguns minutos. O incômodo de quem está de pé, do outro lado, é também uma armadilha. Enquanto há grades entre as pessoas, há incômodo. Além do psicológico, as pernas doem, não há contato físico, é impossível beijar ou abraçar na despedida.
Questionamos o motivo de algumas pessoas não se aproximarem dos fones.
Além do simples “não estar com vontade”.
Timidez...
Medo de não corresponder às nossas expectativas, não ter a reação que esperamos...
Medo de interagirmos de maneira incômoda, com alguma surpresa desagradável ou assustadora...
Medo do inesperado...
Medo que cobremos...
Medo.
Hoje, ouvi: “coragem não é a ausência do medo, mas a capacidade de enfrentá-lo”.
Hoje senti perturbações visuais, que julgo serem por estresse. Por alguns segundos, senti como se meus olhos não conseguissem fixar a imagem. Resolvi fechando os olhos por uns segundos e respirando fundo.
Fugimos para almoçar. Estamos no nosso limite, preferimos sair de cena por quinze minutos e comermos num restaurante da praça de alimentação. Foi necessário para a nossa saúde mental e para podermos ficar bem durante a tarde.
“Significa o estar isolados, distantes uns dos outros, solitários?”
“As pessoas estão entre grades por medo de ladrão, medo de não pagar as contas, medo da falta de dinheiro...” – Ouvimos de um espectador. Novamente, o medo.
Duas amigas vêm nos visitar. Percebemos que as pessoas estão vindo ver o trabalho e ficando, conversando. Pergunto às visitantes, uma artista e a outra psicóloga, o motivo que as levou pararem para conversar. “O lugar é aconchegante e receptivo”.
“É como se eles estivessem na casinha deles, viu? Ela tá no computador trabalhando, e ele, vai jogar um vídeo game!”
“Eu pensei que vocês não podiam sair daqui!” – A gente sai, mas de colete a prova de balas! – Responde o Beto.
“Vocês devem estar felizes porque realizaram uma loucura de vocês...”
quarta-feira, 26 de setembro de 2007
VIGÉSIMO NONO DIA Terça-feira, 25 de Setembro de 2007.
Corro para o LAR DOCE LAR. Hoje o Beto só vem à noite. Está dando aula.
Chego e inicio o dia com a leitura dos jornais. Nenhuma novidade... Falcatruas políticas, falcatruas no futebol, mulheres semi-nuas...
Faço minha maquiagem enquanto penso que poderia ter sido ainda melhor enquanto estive aqui. Os dias estão acabando e bate já uma saudade. Talvez tenha deixado escapar a chance de fazer alguma coisa a mais, sensação de impotência, de que faltou algo, essas coisas de quem sempre pensa que poderia ter ido além.
Visita do artistamigo Leandro, conversa sobre liberdade... Nós, enclausurados, ele, indo embora, buscando a estrada, buscando a si mesmo, buscando o não buscar. Ele leu um texto mais que poético sobre seu projeto, ali, de pé. Ficamos assim, conversando com a grade entre nós por alguns minutos, eu vestindo azul e laranja, ele também, eu vestido e meia, ele paletó e manta. Pensei em convidá-lo para entrar. Rimos da possibilidade de o público pensar em se tratar de uma performance sobre o adultério... O Beto sai e eu coloco outro homem dentro do nosso LAR...! Mas permanecemos separados pela grade.
Frases ouvidas de vozes que passam...
“Liberdade, hoje, é poder escolher a gaiola em que se quer viver!”
“Liberdade é ter cérebro de homem em corpo de passarinho...”
Uma senhora traz uma criança, de uns cinco anos, para escutar a canção... Coloca os fones no menino, que está curioso e atento. No exato segundo em que a criança começa a escutar, a senhora começa a perguntar, freneticamente, para o menino: “Querido, o que tu estás ouvindo? Pronto? Beleza! Tá legal? Então Vamos! Vamos? Acabou? Deu? Agora deu?” E finalizou, tirando os fones da cabeça do menino, no meio da música, dizendo: “Então vamos!” E foram.
Escrevo, escrevo... Percebo que passamos os dias acorrentados a fios: computador, celular, televisão... Serão nossos grilhões?
Envolta em meu robe de seda vermelho, recostada nas grades, sentada no tapete felpudo preto, escrevo. Bebo chá. Um homem de bigode escuta a canção nos fones e dança. O amigo, ao lado, olha para ele, para a grade, para os detalhes aqui dentro (inclusive eu) e ri.
“Tu fica aí o dia inteiro, moça? Por quê?” Pergunta, insistentemente, um homem de uns quarenta anos, terno e gravata. – Sim. É uma obra de arte.– Respondo.
“Ai, que obra de arte chata! Tu tem que ficar aí parada!”, diz o bom homem. – Sorrio. – “Mas, se tu souber de uma boquinha dessas pra mim, me avisa, tá?” – Preferi o silêncio...
“Não vais almoçar?” Perguntaram os funcionários da loja. (Como sabem que eu não almocei?!)
Sinto, pela primeira vez neste lugar, cheiro de incenso.
Cumprimento as pessoas que passam e me chamam, chamando a todos de vizinhos: “Oi, vizinho!”. Somos todos vizinhos de situação, de época, de realidade.
O jingle do shopping já está ferindo os nossos ouvidos. Toca muitas vezes por dia. Pensamos, inicialmente, que a maior dificuldade para os sentidos seria o cheiro da loja de sabonetes, que fica em frente à obra. Ao contrário. Ou nos acostumamos, ou não sentimos, realmente, os cheiros da loja. Mas as músicas-ambiente tocadas nos autofalantes do shopping são difíceis de agüentar, pela repetição exaustiva. É claro que isso não é pensado pela administração, porque as pessoas, teoricamente, estão de passagem, num shopping.
Pessoas fazem muitas fotos... Vão levando pedaços de mim.
“Ah, vocês são da Bienal B, né? Vocês e o pessoal do PoA é Boa, fizeram isso porque não tinha artista gaúcho na Bienal do Mercosul, né?”
“O som parece Raul Seixas!!!”
“Moça! Se eu te libertar daí, tu casa comigo? Ou é o teu coração que está entre as grades?”
Um artista sentou ao lado da grade, fez um desenho da obra, e me deu de presente.
“Cada vez que eu venho ao shopping, tenho que vir aqui ver e ouvir isso, porque é uma coisa incrível esse trabalho!”
“Parece uma casa de uma pessoa que mora sozinha... Um quarto... Um recorte da realidade... De verdade... E tem a música... Que maravilha isso! Vocês não são daqui, né?”
Adolescentes insistiram até que eu os adicionasse no nosso orkut...
“Até a caneta é acorrentada! Hahahahahahahah...”
“Porque vocês estão aí? Pros idiotas perguntarem, né? (risos)”
“Há dias que passo aqui e tenho vontade de salvar vocês! Vocês são gente boa!” – Diz uma senhora com sotaque libanês.
O técnico de manutenção do shopping ficou nosso amigo e veio nos contar histórias dos bastidores do shopping...
O funcionário de uma das lojas, também já nosso amigo, veio nos avisar que haverá um coquetel no shopping, na quinta-feira.
Estamos cansados.
VIGÉSIMO OITAVO DIA Segunda, 24 de Setembro de 2007.
Parou a chuva. Dia lindo de sol, ainda frio. Primavera. Cores maravilhosas nas ruas de Porto Alegre.
O dia começou de forma poética. Um jovem visitante, de uns 20 anos, ficou extremamente tocado pela obra. Ouviu a canção e ficou emocionado, falou da sensação de encontrar algo sensível dentro deste ambiente que ele considera tão frio. Trocamos comentários sobre a arte, a música, e ele foi embora. Deixou uma mensagem no nosso livro de visitas que, a essa altura virou um outro trabalho, tantas coisas lindas escritas... Uns minutos depois, ele voltou para escutar a canção novamente.
Tomamos nosso leite achocolatado com pão de queijo, lemos os jornais.
Pela primeira vez, nestes 28 dias, estou sem paciência para escrever. Meu corpo já não encontra mais posição confortável dentro deste espaço. Tanto eu quanto o Beto estamos irritadiços e com vontade de ir embora. Mesmo assim, estamos conseguindo manter o bom-humor e rir de nós mesmos, assistindo ao desfecho do trabalho e percebendo que já era a hora mesmo de começarmos a querer fugir daqui. Temos constantes ataques de riso, porque a situação de ficarmos irritados com coisas banais é muito engraçada. É como uma experiência. Ficamos brincando de imaginar as nossas possíveis reações durante um ataque de nervos. Por exemplo, diante de perguntas ingênuas do público. Acho que qualquer pessoa nesse lugar já estaria assim, ou pior. Quando percebemos que estamos irritados um com o outro, acabamos também achando graça, já que, em ocasiões normais, praticamente nunca nos desentendermos... Somos muito pacíficos. É muito nítida a percepção de que nossos humores estão completamente alterados pela situação.
Um alarme ensurdecedor de alguma loja disparou e não conseguem desligar. Estamos submetidos a esse som por uns dez minutos.
“Ah, é uma obra do Essa PoA é Boa!” – Muitos eventos de arte pela cidade, as pessoas já estão misturando tudo! ...Que bom! Melhor assim do que uma cidade morta.
Fazemos planos para a produção do evento de encerramento... Alguns acertos de coquetel e som, tudo por telefone e e-mail... Ontem, víamos no noticiário que os traficantes presos também comandam suas equipes de dentro dos presídios, por celulares e rádios. Fazem grandes negociações, compram e vendem, altamente “organizados”.
Pedimos um tele-almoço. Comida caseira. Almoçamos sob os olhares. Já é bem mais fácil ignorá-los, mas sinto falta de comer sem pessoas olhando.
Após o almoço, sentamos em nossa “sacada” e comemos bergamota. Só faltou um sol para nos alegrar e aquecer. Saudades do sol. Quando eu sair daqui, quero abraçar uma árvore, lá na Redenção.
A atendente da loja em frente, já nossa amiga, traz uma gravação para ouvirmos a sua filha, de quatro anos, cantando. São tantos os momentos poéticos aqui dentro. A vida não é pura poesia, quando possibilitamos que seja?
A tarde passa, pessoas passam, sem muita interação, rápidas visitas. Pressa. Escrevo. Atualizo o blog, vejo e-mails, orkut.
Duca Leindecker voltou para rever o trabalho! É muito bom quando percebemos o interesse de algumas pessoas em retornar para compreender, apreender melhor a idéia do trabalho.
Minha vez de ter pressa. 18h. Preciso sair para assistir minha aula prática de aquarela e já estou quase atrasada. Arrumo minhas coisas correndo, visto minha roupa de verdade, meu não-figurino, me despeço, faço recomendações... Parto. Meu corpo parte. Meu coração fica nesta “jaula”.
Hoje foi trocada a exposição em cartaz no Moinhos. O Shopping promove exposições com duração de duas semanas a um mês, no espaço em frente às lojas Masson. Quando chegamos aqui hoje, não era mais a expo de moda que estava ali (criações de alunas da UCS), mas uma exposição de fotos de debutantes. Enormes estruturas em MDF, ricamente pintadas e decoradas, com fotos tamanho A4.
O que me lembra que deve haver um coquetel...
20h18min
O coquetel é uma superprodução. De queijo brie a morangos no chocolate.
Nesse exato momento em que escrevo, avisto um senhor elegantemente sentado em cima da obra da artista Paula Langie, enquanto conversa ao telefone celular. Levanto-me e digo sem som (os lábios se mexem) que isso é uma obra de arte, tentando ser impessoal sem ser grosseiro. Sejamos políticos!
Penso no coquetel que estamos organizando, para o qual já convidamos os lojistas da redondeza, assim como o pessoal da segurança, da administração e tudo o mais...
Provavelmente hoje eu me irritaria até com uma mosca no ouvido.
E penso que o meu texto está muito ácido... Eu estou ácido... Beto-Cáustico.
Hoje é, de longe, o meu dia mais ácido aqui dentro. A agitação contida, a agressividade eriçada e crítica borbulhando. Me sinto humano escrevendo essas minhas sensações que eu mesmo, aqui e agora, reprovo, quando penso racionalmente a respeito. (obs. Este texto publicado está editado, claro.)
...Com as emoções um pouco reviradas, volto-me ao meu pastel de frango com refrigerante, que por sinal está uma delícia...
Tenho muito, e agradeço agora pelo que como, aquilo com o que tantos sonham... Um pastel e um refri, todo dia.
A menina e sua mãe dançam ouvindo a música. Não resisti e fotografei-as.
Um grupo de algumas meninas, uns 12 anos, chegou cheio de perguntas. Poucas quiseram ouvir a música. Queriam saber por que estamos aqui, onde está a Cláu (depois que eu disse que ela é minha esposa e faz o trabalho comigo), se eu dormia aqui, aquelas dúvidas com as quais já estamos acostumados... As meninas já se foram. Uma delas, mais rápida, explica a obra para as outras, de maneira clara e didática.
Agora, um garçom permitiu-se servir uns docinhos para o pessoal da loja em frente. Olhei para ele, mas não foi recíproco.
segunda-feira, 24 de setembro de 2007
VIGÉSIMO SÉTIMO DIA Domingo, 23 de Setembro de 2007.
Ainda chove em Porto Alegre.
Chegamos no shopping e havia uma gravação de um comercial ao lado da nossa obra. E nosso trabalho servia de cabide para um casaco, além de apoiador para umas placas de madeira. Encostadas às grades, inúmeras sacolas e uma arara de figurino. A tomada que utilizamos para ligar nossos disc-men estava sendo ocupada pela equipe, ou seja, não poderíamos ligar nosso trabalho até que eles terminassem. Eles terminaram ao meio-dia. Nada disso nos foi avisado.
Almoçamos comida que a mãe do Beto nos trouxe. Saudades de comida caseira...
Dediquei uns minutos a arrumar as unhas... O Beto captou o seguinte comentário: “Uma instalação com gente dentro! Que máximo! Com gente dentro eu nunca tinha visto! Ela tá fazendo as unhas, e ele mexe no computador!”
“Olha! É o Porto Alegre Em Cena!”
“Parabéns pela ousadia!”
...Pessoas aplaudem!
“Porto Alegre precisa mesmo desses movimentos em lugares alternativos, mais descentralizados!”
“A gente jura que é feliz, mas vive preso!”
...Senhores, bem velhinhos, passam de bengala e param para ver o trabalho.
Um desses senhores nos pergunta: “República ou Monarquia?” – Arte! – Responde o Beto. E ele: “Ah, mas aí tu me desarmas!” – E segue contando uma história de amor que deu errado porque a dama em questão não gostava de arte e poesia... – “Uma mulher sem alma!” – Ele diz. E se despede dizendo que nos ama por estarmos colocando arte na vida das pessoas...
Uma jovem mãe, com o bebê no carrinho, pára ao lado das grades. O bebê se encanta conosco e dá risada, pula no carrinho, “conversa”. Um pequeno espectador. Talvez tenha pensado que somos macacos.
À tarde, assistimos um dvd de suspense. Filme ruim e quase sem som, porque não é permitido aumentar o volume. Acompanhamos pela legenda. Mas foi interessante: nós dois quase deitados, no tapete, cobertos, comendo bala de coco, numa cena das mais caseiras.
Tempo sagrado para manter o mundo virtual em dia: blogs, site, e-mails, orkut... Palavras que até pouco tempo nem existiam e hoje são indispensáveis.
O mundo real também é importante... Temos conseguido acompanhar o que acontece pelos jornais que o shopping disponibiliza aos clientes.
A tarde demorou a passar. Pouco movimento. Pouca paciência. Estamos sentindo modificar o nosso comportamento em relação ao “estar aqui”. Está sendo mais difícil.
Lembrei de um comentário feito por amigos há um tempo e que não foi registrado... Se fôssemos fumantes, não conseguiríamos estar aqui durante tanto tempo. Seria realmente um pouco mais complicado. Os cigarros, para os fumantes, seriam uma fuga para uma pretensa liberdade? Ou uma prisão a mais?
Lanche no início da noite. Café de uma das cafeterias do shopping. Acabamos nos distraindo com visitantes e o café esfriou.
*Happening (acontecimento):
“Forma de espetáculo, muitas vezes cuidadosamente planejado, mas quase sempre incorporando algum elemento de espontaneidade, em que um artista executa ou dirige uma ação que combina teatro com artes visuais.
...Termo criado em 1959, usado para designar uma multiplicidade de fenômenos artísticos.
...Acerca da importância do acaso na criação artística, os happenings foram descritos como “eventos teatrais espontâneos e sem trama”.
...Saída do artista dos áridos limites das galerias e museus para as ruas e praças públicas.
...Eventos programados para chocar a moral estabelecida.
...O happening era tido como algo que deveria criar situações ou eventos que revestissem de aura poética e fantástica os elementos da vida e da tecnologia cotidianas.
...Um instrumento para a produção de contradições.
Em todo o caso, a teoria do happening é tão diversa quanto sua prática.”
Dicionário Oxford de Arte
domingo, 23 de setembro de 2007
VIGÉSIMO SEXTO DIA Sábado, 22 de Setembro de 2007.
Chuva novamente. Porto Alegre cinza. E vazia.
Limpar, arrumar, cena do café da manhã.
De cabeça baixa, escrevo. Quando olho para a escada rolante, ela está lotada, todas as pessoas olhando para a nossa instalação. E eu, distraída, nem lembrava onde estava, aqui escrevendo o nosso diário. Levei um susto.
“Isso é que é vida!”, diz um segurança.
“Agora não, Mariana, eu tenho que ir pra casa fazer a sobremesa!” A curiosidade da menina é maior e ela se aproxima e coloca os fones. Os pais a deixam para trás. Ela escuta um pouco e depois sai correndo.
“Olha! É assim que a gente vive dentro de casa!”
“Uma obra áudio visual!”
O Beto foi ao centro buscar os postais/convites que encomendamos, para o coquetel/show de encerramento.
Beto voltou. 13h30min. Cena do almoço. Buscamos duas porções de arroz num dos restaurantes do shopping e acrescentamos um strogonoff trazido de casa, comprado pronto. Enfeitamos com batatinhas fritas de saquinho. (Mais tarde, uma senhora perguntou o porque de nós comermos somente arroz. Provavelmente ela só viu o Beto chegando com os pratos. É interessante que as pessoas pegam pedaços de cena e montam suas próprias conclusões, criando uma nova história.)
14h25min. O Beto dorme. Tenho sono também. O shopping está bem pouco movimentado. Como um chocolate para passar o sono. Não engordei nenhum grama aqui, mesmo estando muito mais parada do que normalmente. Mas sinto que minha resistência mudou. Fico cansada, como não ficava, quando subo escadas.
“É... Pra entrar lá em casa tem que passar por dois portões, seguranças... Bem assim!”, conta uma senhora aos amigos que a acompanham na visita à instalação.
A funcionária de uma loja próxima traz um cliente para mostrar nossa obra. Ela fala da grande repercussão que teve esse trabalho no shopping, que é muito comentado entre os clientes e funcionários, que as pessoas acham que somos muito corajosos (e loucos) de ficarmos aqui por todo esse tempo. E que ela e as outras funcionárias comentam entre elas: “olha lá, agora eles estão comendo!” ou “olha, eu gosto quando ele está dormindo”, acompanhando a rotina do trabalho. Segundo ela, a instalação é “um espelho”, as pessoas se identificam, se vêem nela. Também disse que faz questão de contar às pessoas que não estamos recebendo nada para estarmos aqui, e então todos gostam ainda mais da obra, por admirarem esse “amor pela arte”.
“A quanto tempo vocês estão aí? Porque vocês estão aí? O que significa?...” Quatro meninas eufóricas nos enchem de perguntas. Depois saem correndo, saltitantes, aos berros, contar à mãe o que “descobriram”.
Ganhamos doces de um casal amigo... Muitos amigos que vieram nos visitar trouxeram doces ou comidinhas... Tentamos não citar nomes, mas a todos ficamos muito gratos pela gentileza... É curioso que, esse comportamento, as pessoas costumam ter quando visitam a casa de alguém, ou seja, o nosso LAR DOCE LAR se tornou mesmo uma referência de casa, como era para ser.
Ignorância. Ato de ignorar. Ignorar uma obra de arte no meio do seu caminho, quando há tempo disponível e oportunidade. Ausência de curiosidade? Ausência de curiosidade causa ignorância?
Observamos que as crianças, em geral, ficam muito interessadas pela obra. Seria o olhar disponível, não-treinado, não-viciado?
“Ele tá ali porque ele não comeu tudo, viu? Tem que comer tudo pra não ficar preso!”, diz o pai ao menininho.
“Isso aqui é um brechó?” – não, senhora, é uma obra de arte. “Ah, é?” (faz cara de decepção e vai embora).
Uma querida amiga nossa, professora de artes, veio nos visitar e acabou dando uma aula sobre o trabalho a uma menina, desconhecida, que estava querendo saber mais sobre a obra. Foi lindo ver uma explicação tão clara e didática sobre o nosso trabalho, ficamos os dois muito emocionados. Obrigada, Si!
Toda a vez que uso as escadas rolantes, ouço comentários muito interessantes sobre o LAR DOCE LAR. Dessa vez, ouvi uma jovem explicar ao namorado: “Viu? Eles ficam ali, o dia todo atrás das grades, para nos mostrar que nós é que estamos vivendo assim!”
sábado, 22 de setembro de 2007
Rauschenberg
VIGÉSIMO QUINTO DIA Sexta-feira, 21 de Setembro de 2007.
Chove muito em Porto Alegre, tivemos que pegar um táxi. O shopping pela manhã está deserto. Talvez pelo feriado.
Tomamos nosso café da manhã quase sem visitantes. Pessoas passam, mas não param.
Visitas ilustres: Duca Leindecker, da Cidadão Quem; Theddy Correa, do Nenhum de Nós; Dunga, técnico da seleção brasileira de futebol, Gaby Benedyct, da Bienal B...
Diálogo:
“Ah, é uma cena da cadeia! ...Tem até televisão!”
“E a mala está debaixo da cama... !”
“Mas eles não têm cara de presidiários!”
(Fiquei pensando: A mala embaixo da cama significaria a estagnação?...)
Foi um dia de produção intensa para o coquetel/show de encerramento. Para começar, foi mudado o dia: será no SÁBADO, 29 DE SETEMBRO, às 18h30min, e não no domingo, como seria. Passamos o dia, envolvidos, confeccionando o modelo do convite e providenciando gráfica que os imprimisse de última hora, e com um valor que coubesse no nosso orçamento. O Beto telefonando para gráficas, eu ao lado, ajudando a decidir quantidades, prazos e valores de convites.
Depois, precisamos pedir a um amigo/apoiador, o fotógrafo/multimídia Jener Gomes, que configurasse o convite para o programa de computador que a gráfica utiliza, já que o nosso computador tem recursos limitados. (Toda essa correria porque a idéia de fazer algo para marcar o fechamento desse trabalho também surgiu na última hora.) Foram aproximadamente sete horas de trabalho, no telefone e na internet, até podermos respirar fundo e sentirmos que a função “convites” havia terminado. Trabalhamos duplamente: como cena e como pessoas reais que somos. A vida real invadindo a nossa arte.
Almoço atribulado em virtude do trabalho. Comemos os pastéis trazidos de casa e tomamos o leite achocolatado, o que seria nosso lanche da noite. A cena pode ser a que muitas vezes se repete em muitos lares reais, quando não temos tempo para almoçar...
Fiz uns desenhos de personagens engraçados, para um deles o Beto criou uma voz ótima, e ficamos rindo igual criança, imaginando o personagem e sua vida. Às vezes até esquecemos de onde estamos... Qual será a impressão das pessoas quando nos vêem aqui dentro, morrendo de rir?
Início da noite. Tomamos um sorvete de três sabores, lindo cenicamente...
Uma sexta-feira com cara de domingo: famílias passeando, em câmera lenta; bebês que querem beijar o cachorro cenográfico; casais de braços dados... Cenas idílicas vistas por trás das grades.
Percebo que se tornou mais difícil perceber os detalhes. Certamente porque já estamos acostumados, e tudo passou a ser ‘‘normal”. Cenas do shopping já caíram no “comum”. Estamos ficando “cegos”. É preciso limpar as lentes de vez em quando...
A mãe traz a menina, de uns sete anos, e comenta: “Ela queria ver os presos!” E diz para a menina: “Não são presos olha, filha, é uma obra de arte!” Coloca os fones na menina, que escuta atentamente a música, com os olhos distantes de quem presta muita atenção, concentrada. A mãe, enquanto a menina escuta, pergunta várias vezes se “já deu”. Até que, ansiosa, tira os fones da cabeça da filha (que faz uma tentativa de continuar ouvindo, mas é ignorada) e a leva, bem antes do término dos dois minutos e quarenta segundos da canção.
Os bebês ficam apaixonados pelo Rex, nosso cão artificial. Dão-lhe beijos, abraços, conversam com ele segredos ininteligíveis que só os cães e os bebês entendem.
Duas meninas, pré-adolescentes, colocam os fones e têm um acesso de riso. Divertem-se muito com a canção e a cena. Riem sem parar. A mãe, que passou reto e já está bem distante, impaciente, chama por elas. Contrariadas, largam os fones e saem correndo, no primeiro minuto da canção.
Um dos seguranças passa dizendo que quer ficar aqui dentro, para “não fazer nada”, conosco.
sexta-feira, 21 de setembro de 2007
VIGÉSIMO QUARTO DIA Quinta-feira, 20 de setembro de 2007.
Feriado Farroupilha. Cidade vazia. Dia cinza. Chove. Shopping vazio.
Somente a praça de alimentação abre às dez. As lojas abrem, opcionalmente, das 14h às 20h. Nós cumprimos nosso horário integral: enquanto há público, ainda que pouco, estamos aqui. Das dez às dez.
Começamos o dia com as tarefas de sempre, só que hoje retiramos o tapete para melhor limpar. O segurança veio nos dizer que não é permitido limpar em frente aos clientes. Mas já estávamos em plena faxina, com a cadeira virada de pernas pra cima sobre a cama, tudo erguido do chão. Ao menos tentamos ser rápidos, apesar de que a cena da faxina deve ter sido interessante para quem passava. Ficamos nos perguntando a razão de esconderem certas ações, como limpar. A visão do cliente deve ser de um lugar perfeito, onde tudo é limpo e perfeito, mas não se vê o “como”.
Hoje inovamos assistindo, recostados confortavelmente, a um filme inteiro: Scoop, do Woody Allen. O som se confundia com o murmurinho do shopping e, vez que outra, parávamos o filme para responder a alguma pergunta de espectador.
Um senhor se aproximou, ouviu a canção, perguntou se poderíamos interagir. Elogiou o trabalho, disse que era de fora da cidade e que tinha vindo especialmente para a Bienal. Em seguida, aproximou-se de nós e disse: “Como eu sei que arte conceitual não vende, mas o artista precisa...” Deu-nos uma nota de 50 reais e agradeceu pelo momento de encantamento que nosso trabalho lhe proporcionou. A forma com que ele agradeceu e fez questão de nos dar o dinheiro deixou-nos muito emocionados. Este tipo de reconhecimento, quando percebemos a emoção transbordando no olhar do espectador, é um momento mágico que não pode ser expresso em cifras. Mas quando uma pessoa paga, sem que peçamos nada, pelo nosso trabalho, sentimo-nos, sim, muito honrados e reconhecidos, porque recebemos um presente de alguém que quis nos retribuir pela nossa arte.
15h. O Beto dorme e as pessoas se aglomeram na grade para vê-lo. É muito curioso como essa situação desperta interesse. Fico pensando no motivo pelo qual as pessoas não têm a mesma reação quando vêem uma pessoa dormindo na calçada, na rua. Será porque a grade garante a segurança de quem está olhando, dando liberdade para olhar? Ou porque sabem tratar-se de uma ação fictícia?
“Deram um lexotan pra ele!” Falam alguns passantes.
As pessoas estão risonhas hoje, riem muito de nós e da música.
Há filas nos fones!
O público hoje está interagindo menos, limitando-se a ver a cena e ouvir a canção. Interessante como isso varia. Há dias em que as pessoas falam muito conosco, outros em que usufruem a cena sem interferir.
Uma senhora muito arrumada: maquiagem, cabelo impecável, jóias. Olhos agitados, aflitos, quase sinto o pulsar disparado do coração. “Lar Doce Lar”, ela diz. Coloca os fones, aperta freneticamente os botões do disc-man. “Mas eu não escuto nada!”, diz para as pessoas que a acompanham. (Após ligar o aparelho, há dois segundos de silêncio até o cd começar a tocar.) Ela sinaliza com a cabeça que a música começou. Ouve uns cinco segundos, tira os fones e vai embora. Não vi os olhos dela passarem por um momento sequer pela obra como um todo. Só vi aflição e agitação. Não me parecia que havia motivo para a pressa, ela parecia estar passeando, mas não se permitiu sentir nada. Ou conhecer algo novo. Ou brincar.
“O que é isso pai???”, grita uma criança. “Isso é uma Obra de Arte!”, diz o pai, com uma certa pompa na pronúncia das palavras. Ele pára e escuta a música. A mãe segue com as crianças. Uma das crianças volta correndo, quando vê que o pai está escutando algo e sorrindo. Grita: “Eu também quero, pai!!!” Ele, pacientemente coloca os fones na criança. Ela ouve alguns segundos e arranca os fones: “Não quero mais, pai!!!”, num grito estridente. Ele recoloca em si os fones e escuta até o fim. Depois vai ao encontro da família, ainda sorrindo.
Alguns clientes do shopping já são nossos conhecidos. Nos acenam das escadas rolantes! Retribuímos, como velhos vizinhos na sacada de casa. Não raramente falamos com as pessoas das escadas, gritando: “Tudo boooom?! Passa aqui depois!”
Uma senhora pára, olha... E dá a sua opinião, falando bem alto: “O que falta para mudarem essa situação é voltarem a dar na escola: filosofia, religião, moral e cívica!... Cuidaram tanto da tecnologia e deixaram o humano de lado!... As pessoas modificam quando estão no poder, têm sede de poder!...”
“Olha, olha! Parece um filme ouvir a música e vê-los aqui!”
quinta-feira, 20 de setembro de 2007
VIGÉSIMO TERCEIRO DIA Quarta-feira, 19 de Setembro de 2007..
Sol lá fora. Na rua, temperatura média. Aqui, movimento regular.
Ao chegar no shopping, uma surpresa com relação à obra da artista Kátia Costa: o Cofre. Havia pessoas filmando um clipe musical, dentro da obra, sem a autorização da artista que, por um quase acaso, apareceu no exato momento em que tudo acontecia. Resolvida a situação, a artista tendo dado a permissão para a filmagem, fica a questão do direito sobre a obra. A propriedade intelectual. Podem as pessoas usufruir uma obra dessa forma, sem ao menos comunicar ao criador da mesma? Seria um sintoma da era da Internet, onde tudo é de todos?
...Enquanto conversamos com a artista, ela do lado de fora e nós dentro da nossa obra, pessoas param para ouvir o que estamos dizendo, como se já nos conhecessem, com a maior naturalidade. Já nem estranhamos mais, entendemos que tudo o que acontece nesse espaço é, de alguma maneira, arte.
Almoçamos tele-entrega de comida caseira das redondezas. O entregador trazendo a comida, uniformizado, é uma cena à parte.
A correria retornou às nossas vidas, mesmo aqui dentro. No início desse trabalho tínhamos um tempo que não passava, que precisávamos preencher para evitar o tédio. Agora, o dia é pouco para tudo o que planejamos diariamente. Resolvemos inúmeras questões de trabalho por e-mail e telefone. Estamos produzindo o show de encerramento do LAR DOCE LAR, que será aqui mesmo, no domingo, dia 30 de setembro, às 18h30. Recebemos duas redes de televisão hoje, que nos entrevistaram: a TVE e a Band. O dia passou voando. É como se a nossa rotina fora daqui tivesse invadido esse trabalho e, agora, somos ainda mais reais. Mais uma vez, tudo toma forma sem que possamos intervir.
Um visitante se aproxima para dizer que já foi assaltado cinco vezes, numa das vezes foi deixado nu pelos assaltantes, mas que se recusa a viver enclausurado, segue fazendo as mesmas coisas que sempre fez, indo aos mesmos lugares, vivendo do mesmo jeito.
O simpático jornaleiro que vem ao shopping para fazer entrega, de uns dias para cá, passa diariamente no nosso LAR para dar-nos um jornal de cortesia! Mais uma ação espontânea e imprevisível que se agrega ao nosso happening.
Tânia Carvalho veio nos visitar: “Já me falaram muito de vocês!”
Uma obra viva às vezes chama pelos amigos distraídos que passam sem ver: “Ei! Vem aqui ver a minha casa!”
Escada rolante lotada. Espectadores em trânsito. Olhares de espanto, sorrisos, estranhamento. Desconhecidos acenam.
O shopping devolveu nosso cão cenográfico, o Rex.
Um funcionário do cinema nos chamou de “os boa-vida do shopping”. Segundo ele, para os funcionários do shopping “estar aqui é moleza” e eles pensam que estamos ganhando muito dinheiro por esse trabalho porque, só assim, vale a pena.
“Eles moram aí, é a casinha deles!” Explica o pai ao menino.
quarta-feira, 19 de setembro de 2007
VIGÉSIMO SEGUNDO DIA Terça-feira, 18 de Setembro de 2007.
Chove. Chego sozinha. É o dia em que o Beto dá aula e só vem à noite.
O segurança brinca: “Só porque o inter perdeu, ele não veio trabalhar, é?”
Sigo o ritual de abertura do trabalho. Colocar o “figurino”; descobrir as gaiolas (que ficam cobertas durante a noite, como que para os passarinhos dormirem); tirar os utensílios básicos da mochila e escondê-la embaixo do tecido vermelho; esconder tudo o que não pertence à cena; armazenar as comidas no criado-mudo; limpar o tapete.
Olhar de fora, acertar os tecidos.
Ouvir os fones, acertar os volumes.
Tudo pronto para mais um dia de LAR DOCE LAR.
A vulnerabilidade de estar aqui exposto ainda não havia ficado tão clara quanto outro dia, quando um homem, aparentemente normal, veio até nós e iniciou uma conversa que logo percebemos ser de uma pessoa com alguma psicopatia. Extremamente desconfiado, ele disse ao Beto: “eu e tu somos caras legais, mas ela, não.” (Ela, sou eu.) Disfarçamos e tentamos manter a cena, mas ele nos solicitava atenção. Depois daquele dia, diariamente, ele vem ver a instalação. Hoje veio novamente. E eu estava sozinha. Diante do meu silêncio, ele foi embora.
“Moça, tu não morre de tédio de ficar aí?”, pergunta uma adolescente. A nova geração, acostumada ao excesso de informação atual, fica ainda mais admirada em ver-nos aqui “presos”.
“Oi, Cláu! Cadê o Beto? Eu leio todos os dias o diário de vocês!” Pessoas que eu não conheço, mas que passam a me conhecer através do trabalho.
Acabei meu segundo livro aqui dentro: Filhos de Anansi, de Neil Gaiman.
Uma senhora diz que demorou a ter coragem de se aproximar porque tinha a sensação de estar me invadindo. “Rondou” a obra alguns dias, até conseguir chegar perto e ouvir a canção.
Essa mesma senhora contou que sua filha está no Canadá e recusa-se a voltar porque, lá, ela pode voltar sozinha da aula e sentar num parque com os amigos, sem ter medo. Agora, a jovem diz não conseguir mais se adaptar à realidade que vivemos no Brasil.
A funcionária da loja em frente trouxe, até o nosso LAR, as fotos das filhas para me mostrar. Teve toda a dedicação de escolher, separar e trazer fotos do que imagino serem as coisas mais importantes da vida dela.
A fotógrafa do jornal O Sul veio fotografar nosso trabalho, bem como as outras obras que estão espalhadas pelo shopping, para uma matéria que sairá no final de semana. O interesse e apoio da mídia é sempre uma felicidade por termos, assim, o nosso trabalho e esforço reconhecidos.
A mãe do Beto apareceu trazendo cachorrinhos-quentes. Apoio familiar indispensável...
Uma pequena menina, tímida, se aproxima. Deve ter uns quatro anos de idade. Olha-me nos olhos. Enfim, pergunta: “Qual o teu nome?” – Cláudia, e o teu? – “Ana”. E vai embora.
Leio o jornal. Bagunça total no governo brasileiro.
“Ta muito legal, né, mãe???” Grita o menino com os fones nos ouvidos, pensando falar baixo. Veste bombacha e chapéu, devido à semana Farroupilha.
“Mas que linda obra de arte...” Diz o rapaz galanteador, lançando-me um olhar lânguido e sensual.
Danilo e Viviane, ele psiquiatra, acharam a canção um tanto “psicanalítica”, assim como nossas outras canções, que conheceram num show que fizemos anteriormente. Aproveitamos para consultá-lo, dizendo que talvez precisemos de uma terapia após o término desse trabalho, ao que ele respondeu que achava que, ao contrário, pelas nossas caras, estamos muito bem. Ufa!
Uma criança de aproximadamente dois anos fica hipnotizada com a visão da “jaula”. Quer se aproximar, mas tem medo. Olha-nos assustada. Dá uns passos na nossa direção, mas recua. O confinamento impõe distância, mesmo para uma criança. As grades representam perigo?
Beto chegou do seu trabalho no mundo externo, trazendo cookies de chocolate.
Ficamos contando como foi o dia um para o outro até percebermos que mais um dia havia terminado.
terça-feira, 18 de setembro de 2007
VIGÉSIMO PRIMEIRO DIA Segunda-feira, 17 de Setembro de 2007.
Dia de sol, vento, frio.
Ao chegar, havia três chocolates bis jogados na nossa instalação.
Limpar, organizar, libertar nossos passarinhos/cds para serem ouvidos. Seriam os disc-men, disc-birds?
Deixo a cena pronta, enquanto o Beto segue seu ritual de escutar a canção e regular os volumes. Só agora dou-me conta de que, acabamos dividindo as tarefas de acordo com as nossas áreas: eu, o visual, ele, o som.
.Tomamos nosso leite achocolatado de caixinha e pães de queijo, o shopping está bem pouco movimentado.
A sensação já é quase a de estar em casa... Já não nos importa nem um pouco os olhares.
Uma ligação nos dá uma notícia muito feliz: falaremos do nosso trabalho na TVE, mais uma vez.
Enquanto a manhã passa, tranqüila como são as manhãs de segunda no shopping, fazemos planos para o COQUETEL-SHOW DE ENCERRAMENTO do nosso LAR DOCE LAR. Sinto, pela primeira vez, um gosto de saudade.
13h30. O Beto sai para buscar o nosso almoço, no restaurante de sempre, fora do shopping. O movimento já é bem maior. Pessoas que vêm almoçar. Ele chega e temos que fazer toda uma manobra para que os visitantes não vejam as “quentinhas” que, esteticamente, não condizem com a realidade dos nossos personagens, definitivamente. Servimo-nos atrás da porta do criado mudo, quase dentro dele, num ato de contorção, habilidade e destreza surpreendentes. E comemos, com nossas expressões de quem está degustando o mais fino banquete em Paris. Passam os executivos apressados. Passam, passam, passam. Poucos páram. Os que páram, ouvem, riem. Parece que este público, especificamente, busca somente o riso. A reflexão, provavelmente, os cansa.
A tarde foi terapêutica. Enquanto as pessoas passavam, vez ou outra parando para escutar a canção, nós dois conversávamos assuntos profundos, análises de nós mesmos. Houve momentos em que estávamos imersos nas profundezas das nossas almas e tínhamos que voltar à superfície para responder alguma pergunta insistente sobre a obra.
Hoje é o dia em que eu, Cláu, saio um pouco mais cedo para a minha aula prática de aquarela. É sempre difícil sair daqui antes do horário de término. O corpo vai, mas a mente fica.
“Lar Doce Lar. Pode falar com ele!” Diz um homem, para um casal que está junto. No entanto, os três partem sem ouvir ou falar.
“Poderia ficar aí sem a informática?”
“Tem alguma relação com o quarto do Mário Quintana?” O Quarto do Mário Quintana é uma réplica do quarto onde ele viveu seus últimos anos, e se encontra na Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre. Refletimos sobre a comparação e é interessante traçar um paralelo: é possível que haja coisas em comum com o quarto do poeta. E há diferenças que deixam claras as mudanças ocorridas: no quarto de Quintana, há uma máquina de escrever, aqui o computador. O quarto de Quintana é livre de grades, o nosso é uma jaula. E tantas outras sutilezas... Há tanto a pensar quanto a isso...
segunda-feira, 17 de setembro de 2007
VIGÉSIMO DIA Domingo, 16 de Setembro de 2007.
Um lindo Domingo nublado. Ruas vazias, provavelmente a maioria das pessoas ainda está dormindo. Seguimos para o nosso “caso de amor”. Depois das dificuldades de adaptação dos primeiros dias, agora, só resta a satisfação de estar aqui. Na materialização de uma idéia, na concretização de um sonho.
Três senhores se aproximam. Um deles pergunta: “O que é isso aí, hein?”, com um certo desprezo no olhar e na voz, como se o que nós estamos fazendo não fizesse o menor sentido, a menor diferença. E, ao perceber que se trata de uma obra de arte, dá de ombros, como quem conclui que, de fato, uma obra de arte é algo inútil para a sua existência. Mas, como dizia Mário Quintana, “se alguém perguntar o que você quis dizer com esse poema, responda: o que Deus quis dizer com esse mundo?”
No domingo, as portas do shopping abrem às dez da manhã, mas as lojas só abrem às 14h, e apenas algumas. Ainda assim, mantivemos o nosso horário, porque há sempre algumas pessoas circulando pelos corredores. As funcionárias da cafeteria do andar de cima, já nossas amigas, esquentaram gentilmente o nosso café da manhã, já que não havia clientes. Enquanto eu esperava que nossos salgadinhos esquentassem, ouvi delas que muitos clientes perguntam sobre o nosso trabalho e, não raramente, elas escutam discussões sobre ele nas mesas. Uma das atendentes me contou que faz questão de explicar tudo sobre a nossa obra, que somos dois artistas de Porto Alegre, que somos casados, que estamos simbolizando a realidade atual... E, diante de mim, tive uma explicação sobre meu próprio trabalho, vinda de uma moça que trabalha numa área completamente diferente da minha, num lugar onde não se espera discutir arte. É um privilégio, como artista, fazer parte dessa interação. Aquilo foi de uma beleza para mim, que quase chorei.
Uma funcionária da cafeteria me contou que a pergunta mais absurda que já ouviu sobre nós foi: “Mas aquilo ali são pessoas de verdade?”
Definitivamente, hoje é o dia em que as famílias contemporâneas saem para dar pipoca aos macacos. Na falta de macacos, porque os hábitos mudaram, e muitas pessoas preferem os shoppings a levar os filhos ao parque, hoje, os macacos somos nós. O olhar sobre o trabalho muda completamente. Somos atração não pela obra, mas por sermos criaturas enjauladas. É difícil não rir quando um jovem pai, que passa com o filho de uns 3 anos de idade, pára em frente ao trabalho e diz, com muito espanto: “Olha, cara! Tem um cara aqui dormindo, ó!” O menino olha, assustado, para o Beto. Os dois se aproximam ainda mais, encostando o nariz na grade. Circundam o Beto, com olhares de quem acaba de encontrar um filhote de dinossauro. A criança está muda, assustada, já está puxando a mão do pai para fugir dali, antes que o monstro acorde. O pai, boquiaberto, num meio sorriso de surpresa e espanto. O menino puxa o pai e eles seguem seu passeio.
Um outro menino, de uns dez anos de idade, pára em frente à instalação. Estou escrevendo e nem percebo que ele está enchendo um saco plástico de ar, diante do Beto, que dorme profundamente. Depois de bem cheio, ele aproxima do Beto e estoura. E sai correndo. O Beto nem se mexeu.
“Vou dar um beliscão nele pra ele acordar!” Comenta uma moça que passa...
Em frente às grades, pára um menino de óculos, de uns quatro anos. Comenta com a mãe, aflito: ”Eles estão numa jaula? Eu não quero estar numa jaula!!!”
A avó de uma querida amiga veio ver o nosso trabalho. Aos 84 anos, ela mantém os olhos vivos, lúcidos, a pele uns 20 anos mais jovem do que a sua idade cronológica. Me desafia: “Que idade tu me dás?” Conversa animadamente, ouve a música, elogia o trabalho. Conta que é ceramista, e ainda pratica, mostra no peito o colar de cerâmica que ela mesma fez. Pergunto o segredo de tanta vivacidade, e ela professa: “Viver o momento! Dar valor às pequenas coisas! Ser feliz!” Quem há de discordar?
Volto do banheiro e há uma comitiva à minha espera: “Ah, tá ali ela! Ta ali ela!”
O Beto já tem diversos apelidos, dados pelos seguranças e funcionários do shopping: Jesus, Lennon, Lobão...
“Mas com quê eles se mantêm?” Pergunta uma senhora ao senhor que a acompanha. “Eles comem, ora!”, ele responde, sem paciência.
Sento de costas para os fones, de frente para a escada rolante, vejo o andar de baixo. Às vezes me refugio assim, de costas para o público, ainda que não haja forma de escapar dele. Mesmo nessa posição, fico de frente para as escadas rolantes. Às vezes dá vontade de ficar sozinha um pouco. É muita gente. Cansa. A atenção constante, para fins de registro, cansa.
...Olhos espantados me vigiam da escada rolante.
Uma menina traz o avô para nos ver. Ele escuta a música, ela escuta duas vezes. Ao sair, ele conta, com a vaidade dos avôs: “Ela me trouxe até aqui só para ver vocês!”
“O que é isso?” É uma obra de arte!
“Tem gente que tem tanto, tanto dinheiro, mas que só tem dinheiro!” Ouço de uma senhora.
19h. Estou de cabeça baixa, escrevendo. Crianças tossem insistentemente para chamar a minha atenção. Só pararam quando levantei os olhos da tela e sorri para elas.
Lindos cachorrinhos com laços de fita no colo das suas donas... Crianças tomando sorvete... Cheiro de café...
Um dos seguranças vem me contar que uma senhora, cliente que passava pelo shopping, veio dizer a ele que deveríamos fazer esse trabalho no aeroporto... Porque, com a crise aérea, poderíamos alugar o espaço para as pessoas que têm que dormir por lá quando perdem o vôo.
“Há dias estou curiosa... Podes explicar isso?”
- É uma obra de arte. Como um quadro.
“Ah, é só isso então? Não está divulgando nada?”
- Penso que a arte não tem um propósito além de ser... Mas não falo. Não é este o meu papel aqui.